terça-feira, 11 de outubro de 2016

Vida Súbita (3) - Round 1

- Sr. Adriano?
- Sim, eu mesmo.
- Preparado?
- Preparado pra quê?
- Pra lutar por sua vida.
- Como assim?
- A próxima luta é sua.
- Desculpe... não estou entendendo...
- Lutem!
- Oi???
PAFFFFF! 




Pronto. O primeiro round termina aqui. Você acaba de beijar a lona. Você não... eu. Mas se fosse você... ou qualquer outra pessoa... estaria no chão do mesmo jeito. E o pior: sem sequer perceber o que havia acontecido. Quem me acertou... quem nos acerta... e sem qualquer aviso prévio... é algo traiçoeiro o suficiente para nocautear o mais forte dos seres humanos: a morte.

Receber a notícia de que há algo muito errado com seu corpo é um imenso soco no estômago. É algo que nos faz perder a respiração, que nos deixa sem sentidos. Não há como ser diferente, não existe uma forma suave de lidar com uma má notícia. E eu recebi essa má notícia da equipe médica: "Chegamos a um diagnóstico... você tem uma doença... e é grave".

Ela - a tal doença grave - nos obriga a iniciar uma luta arbitrariamente indesejada. Pior: ela inicia o primeiro round já sabendo o que vai fazer e onde vai te acertar. Você - o ser humano que se acha imune a tudo - jamais foi preparado para lutar por sua própria vida. Ninguém cogita que uma ameaça passará tão próxima, ninguém se prepara, ninguém recebe treinamento, ninguém jamais pensa no pior.

Receber o diagnóstico de uma doença grave é ser obrigado a pensar no pior. É ter que encarar o medo de frente, é entrar numa briga sem querer... e já tomando um soco na cara. Quando se recobra a consciência, já estamos acuados no canto do ringue. E desse canto, ainda meio atordoados, vemos que a vida mudou. E mudou para pior. E o pior continua ali... esperando-nos voltar para os rounds seguintes. E serão vários rounds... vários... e não sabemos quantos.

Como se não bastasse saber que tenho uma doença grave e incurável, o nome do que tenho é péssimo: displasia arritmogênica de ventrículo direito.

Podiam dar nomes mais amenos às doenças, tipo "chá de boldo"... "você tem chá de boldo". Seria mais fácil lidar com nomes leves. Mas além de não ter nome de chá, minha doença traz aspectos mais assustadores: é incurável e progressiva. Três golpes numa doença só. Podia ser grave, mas haver alguma cura. Podia não haver cura... mas permanecer estável. Mas, além de ser grave e não haver cura, isso vai destruir meu coração aos poucos.

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Estou deitado numa cama do Hospital Dante Pazzanese, em São Paulo. Leito 12. É terça-feira, 7 de abril de 2015. Guardei a data sem querer, preferia não lembrar. É meu momento de entrar no ringue e começar a lutar. Porém, ninguém me preparou... eu não conheço as regras do combate... estou ali contra minha vontade... e não dá pra simplesmente ignorar ou fugir.

Naquela tarde de outono minha vida mudou. Difícil descrever a sensação... é como se tivessem tirado meu horizonte e colocado um muro em minha frente. Depois do muro, eu já não sabia mais o que me esperava. Alguns segundos antes... só alguns segundos...  meu futuro ainda estava ali, junto com meus planos de vida... com tudo aquilo que desejava fazer. E... de um segundo pra outro... eu não sabia mais o que esperar do resto de minha vida. Isso assusta. Assusta muito!

Mas calma! É preciso respirar, é preciso entender e assimilar o golpe. O primeiro round é inesperado mesmo... foi comigo e será com qualquer pessoa que enfrente um risco de vida. Toma-se a porrada, desaba-se e pronto. Porém, não é o primeiro round que define nossas vidas... não é nesse que a doença ganha e você perde. Pelo contrário... é o round onde se descobre que a luta pode ser equilibrada. A doença surgiu, o diagnóstico foi inesperado, mas é justamente essa descoberta que nos dará a chance de lutar contra algo que eu e você desconhecíamos até agora.

Eu entrei no ringue sem querer, passei pelo primeiro round e já voltei para lutar outros. Já fui nocauteado, já perdi o fôlego... mas me recobrei. Agora entendo que terei de batalhar por minha saúde, minha vida e tudo de bom e ruim que vier com ela.

A primeira boa notícia nessa turbulência toda é: quando recebemos um diagnóstico de uma doença, seja ela mais ou menos grave, somos colocados em pé de igualdade com aquilo que nos ameaça. É como ser apresentado ao inimigo: "Adriano, Displasia. Displasia, Adriano".

Tá... eu sei... melhor seria jamais ter recebido uma notícia dessas. Mas a vida também é estatística... pessoas ficam doentes, pessoas têm síndromes raras, pessoas enfrentam doenças incuráveis. E por mais que eu me sinta especial ou merecedor de uma vida brilhante... faço parte das estatísticas desse mundo. E se as estatísticas me obrigam a lutar, pelo menos que eu saiba o que estou enfrentando.

A segunda boa notícia é: não importa a doença ou síndrome que você tenha, a medicina do século 21 possui condições de combatê-la de alguma forma. Isso significa que nem mesmo o pior dos diagnósticos será enfrentado sem reação de nossa parte. A chance de simplesmente poder lutar já é algo fantástico quando enfrentamos uma ameaça à vida.

E a terceira boa notícia - talvez a mais importante - é esta: o combate não será apenas da medicina e dos medicamentos contra a doença. O combate será, principalmente, do quanto eu ou você temos coragem para superar isso.

Coragem significa que viveremos uma batalha interna de nossas emoções positivas contra negativas. Nada... nenhum diagnóstico ruim... nenhum médico neste mundo... pode determinar o quanto sua ou nossa coragem poderá interferir na cura de uma doença. Coragem é um dos ingredientes da chamada Resiliência, que é a capacidade que temos de resistir a uma pressão muito grande... uma pressão que quase nos quebra ao meio. Mas, ao invés de quebrarmos, voltamos a ser o que éramos.

É neste ponto que nossas batalhas pessoais começam: na coragem... na resiliência... naquele momento em que começamos a reagir emocionalmente contra o que nos ameaça. Foi neste ponto que minha batalha começou. Entrei num ringue sem querer, tomei uma bela porrada... tenho uma doença cardíaca grave, incurável e progressiva.

Admito que isso me abalou profundamente. Mas também tenho resiliência... comecei a reagir quase imediatamente. E reajo porque quero viver, porque ainda tenho planos a realizar. Eu ainda não sei... você ainda não sabe... mas é a partir de agora que a vida começa a valer a pena. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

O golpe de 2016

Guarde esta data: 31 de agosto de 2016. É um dos mais inescrupulosos dias da história política brasileira e, até mesmo, da história política mundial. Está consumado o golpe contra Dilma Rousseff, primeira mulher a ser eleita presidente do Brasil.

Explicar tudo que levou ao golpe é complexo, há um conjunto de fatores políticos, econômicos e sociais. Também há a criminosa mídia brasileira, cujo papel foi propagar mentiras sobre os governos progressistas
que tivemos desde 2002, quando o PT chegou à presidência pela 1a vez.

As manipulações sociais que levaram à deposição de Dilma estão devidamente registradas em sites e veículos de comunicação progressistas, além de blogs de jornalistas e escritores independentes. Já há livros publicados sobre a farsa que derrubou o governo brasileiro, uma pesquisa no Google lhe mostrará a verdade sobre o golpe.

Que as gerações do futuro lembre-se disto: há uma verdade e uma mentira sobre o golpe.

A mentira afirma que não houve golpe político, discurso que vem dos setores reacionários da sociedade brasileira. A mentira vem de políticos de extrema-direita, ajudados por veículos de comunicação ultra-conservadores, como as revistas Veja, Istoé e Época, além dos jornais Folha, Estadão, O Globo, dentre outros. Aliás, a Rede Globo liderou o golpe do começo ao fim. O ápice da farsa foi a transmissão da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, um show de hipocrisia que parou o país num domingo, como a deposição de Dilma fosse uma final de campeonato. A mentira sempre dirá que não foi golpe.

A verdade é que houve golpe, um golpe escancarado. A verdade mostra como uma mídia hipócrita e fascista construiu um discurso de ódio ao PT e aos seus presidentes, Lula e Dilma. Discurso de ódio significa criar mentiras e factóides para fazer um governo parecer extremamente corrupto, quando não é. Claro que o PT enfrentou problemas de corrupção, afinal esta é uma prática endêmica no país. Contudo, foi o partido que mais fortaleceu o combate à corrupção nessa curta história democrática, que vivemos desde 1985.

Que as gerações futuras lembrem-se disto: a mídia tradicional é manipuladora e fascista.

Chamar a mídia de fascista é elogio numa altura dessas. Os barões da mídia foram muito além do fascismo para conseguir o impeachment de Dilma Rousseff. Foram além porque, ao contrário do fascismo original, que se mostrava claramente violento, a mídia fascista brasileira (e seus barões) mostram-se como pessoas cordiais. É um fascismo dissimulado.

A queda de Dilma representa a queda da democracia no Brasil e um duro golpe na frágil democracia da América Latina. Já sabemos que os Estados Unidos tiveram participação no golpe atual, assim como ocorreu com o golpe de 1964. Porém, o golpe se sofisticou, dessa vez não foram usados militares, como se usava no século 20. Dessa vez o golpe usou até mesmo a justiça brasileira, corrompendo o Supremo Tribunal Federal, corrompendo deputados e senadores, corrompendo quem estivesse disposto a se corromper. E muita gente estava.

Afastei-me de meu blog nos últimos meses justamente porque participei da guerra virtual contra o golpe que derrubou Dilma. Fui um ativista no Facebook, publiquei dezenas e dezenas de posts defendendo nossa democracia. Isso me custou muitas amizades, descobri que tenho parentes e amigos extremamente reacionários... gente que, além de apoiar o golpe, carrega preconceitos contra negros, índios, pobres, gays e até estudantes. Essa gente toda eu excluí de minhas redes sociais e de minha vida. Ou eles me excluíram, o que acabou sendo um favor.

Espero poder voltar em breve a este blog para comemorar uma reviravolta nesse sombrio cenário. Infelizmente, as análises de especialistas dizem que o golpe veio para ficar, que a esquerda não terá outra chance tão cedo. Se eles estiverem certos, eu não devo ver o país democrático novamente. Espero que vocês, que estão aí no futuro, tenham esse privilégio que tivemos de 1985 a 2016. Foi ótimo viver na democracia, ainda que imperfeita, que tivemos de 1985 a 2016. Democracia construída principalmente por Lula e Dilma, que olharam pela primeira vez pelos menos favorecidos. Guardem isto tudo, é pura verdade.

domingo, 8 de maio de 2016

Golpe no meio do caminho

Comecei 2016 me propondo a escrever sobre essa nossa estranha "Vida Súbita", título que dei ao conjunto de textos que já comecei a publicar. Os textos 1 e 2 estão exatamente abaixo deste. A ideia é compartilhar desafios de vida enfrentados por pessoas que, por diferentes motivos, chegaram aos limites de suas forças para superar graves doenças que ainda não têm cura em nossa época.

No entanto, deixei de escrever no último mês para me dedicar a uma guerra virtual contra o golpe político que está quase se impondo sobre o Brasil. O governo democrático de Dilma Rousseff vem sendo seriamente ameaçado por uma sequência de sabotagens vindas dos políticos, das mídias e dos empresários mais sórdidos da nação. 

Indivíduos sem escrúpulos, além de instituições públicas e privadas, todos extremamente conservadores, buscam derrubar Dilma de modo ilegítimo. Tentam fazer isso articulando o impeachment da presidente de forma criminosa, acusando-a por um crime que não existe... ajustes orçamentários ilegais, popularmente conhecidos como "pedaladas fiscais". A ideia é sórdida em todos os sentidos, pois além da busca do poder presidencial pela força da mentira, políticos, empresários e mídia tradicionais ameaçam impor ao país uma agenda de retrocessos em diversos campos (ver em http://bit.ly/1rGF8j9).

Neste momento, estão ameaçadas desde conquistas trabalhistas até direitos humanos, já que os golpistas são formados por setores conservadores e religiosos que se opõem tanto ao avanço das classes mais pobres, quanto à aprovação de leis a favor das mulheres, aborto, homossexuais, indígenas, meio ambiente, reforma agrária, reforma política, dentre outros (ver reportagem da revista Brasil de Fato: http://bit.ly/23zvMls)

Além da dimensão interna, o golpe possui interesses que extrapolam as fronteiras brasileiras. Há uma geopolítica envolvendo a tentativa de derrubar Dilma, ou seja, um conjunto de interesses de vários países e diferentes sistemas de governo (a melhor matéria a respeito é da revista Carta Capital: http://bit.ly/24F5QHv)

Desde 2002, quando o PT assumiu a presidência do país, passamos a nos aproximar de ações para fortalecer países em desenvolvimento que ainda buscam ocupar um lugar estratégico no mundo. O grupo do BRIC - Brasil, Rússia, China e Índia - é o melhor exemplo desse xadrez mundial de poder. Enquanto esse grupo avança, o grupo de países desenvolvidos vê com incômodo essa união. Questões como neoliberalismo e interesses nos recursos naturais também estão em jogo nessa tentativa de golpe no Brasil (ver reportagem em http://bit.ly/26mRRIe).

Há dois personagens principais tentando derrubar Dilma, ambos asquerosos e ambos representando o que há de pior na classe política e empresarial brasileira. Um é o agora ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, talvez o político mais escabroso que tenhamos visto no país... e olha que o Brasil está cheio deles (ver http://bit.ly/1q7tGfl). O outro é o vice-presidente da república, Michel Temer, um sujeito que foi erroneamente escolhido pelo PT para articular interesses partidários em prol do governo.

Eduardo Cunha e Michel Temer representam tudo que há de mais ultrapassado no cenário político: ambos são do PMDB, um partido que guinou à direita mais ultra-conservadora, após ter lideranças que ajudaram o país a sair da ditadura. Ambos são religiosos - ou falso religiosos - já que falam em fé para justificar atos ilícitos e impor uma agenda de retrocessos em nossas leis. Ambos representam grupos empresariais como a FIESP, um aglomerado de homens de negócios cuja visão de mundo está parada no autoritarismo de séculos passados (ver http://bit.ly/1QVH4Jq)

Como se tudo isso não bastasse, o episódio mais vergonhoso do atual golpe foi protagonizado pelo infame Eduardo Cunha. Mesmo sendo acusado, formalmente, por diversos crimes, tanto no Brasil quanto no exterior, esse imenso canalha conseguiu apoio das principais instâncias jurídicas do país para conduzir a votação do impeachment de Dilma no Congresso. A absurda e vergonhosa votação não foi para julgar qualquer crime de Dilma, mas para deputados exporem o Brasil à vergonha absoluta. Protagonizaram um show de horror numa sessão de impeachment que poderia ser despejada no esgoto da história nacional (ver http://bit.ly/1rBq3j3).

O próprio STF - Supremo Tribunal Federal - omitiu-se quanto ao afastamento necessário e gritante de Eduardo Cunha, permanecendo impassível e sem julgá-lo por tantos crimes graves. Foi esse tempo de letargia do STF que o infame Cunha usou para organizar a farsa do impeachment dentro de nosso bizarro congresso (ver em http://bit.ly/1SWGpND).

Hoje é 08 de maio, um nublado sábado de 2016. No próximo dia 11 (quarta-feira), o Senado julgará o falso processo de impeachment contra Dilma Rousseff. O relator do processo é um senador golpista do PSDB, o ex-governador de Minas Gerais, Antônio Anastasia. É o mesmo sujeito que praticou quase mil "pedaladas fiscais" em seu governo, mesmo "crime" do qual Dilma é acusada (ver matéria em http://bit.ly/1X7q4rc). Aliás, o motivo alegado para um impeachment é tão irrelevante que outros 16 governadores praticaram os mesmos ajustes que Dilma (ver em http://bit.ly/1RhNWob).

É difícil resumir, num só texto, todos os absurdos sobre o golpe em andamento no Brasil. Há centenas de fontes, inclusive a própria mídia internacional reconhece a farsa política que paira sobre nosso país (acesse http://bit.ly/1T67Vu4). Na contramão, a mídia nacional conservadora colocou-se ao lado dos golpistas e dá versões manipuladoras sobre o processo. Rede Globo, jornais Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, revistas Veja, Istoé e Época são as faces mais grotescas dessa armação. 

Felizmente, o jornalista, escritor e advogado americano, Gleen Greenwald - vencedor do prêmio Pulitzer 2014, vem denunciando o golpe ao mundo (acesse http://bit.ly/1SYLFwN). É uma voz importante contra toda a mentira montada para derrubar um governo eleito democraticamente. É uma voz que se soma à milhões de outras que estão engajadas em proteger o governo Dilma via redes sociais.

Eu sou apenas mais uma dessas vozes, mas me junto à todas e todos que vêm denunciando o golpe via internet. Espero que consigamos barrar esse absurdo. Se não conseguirmos, pelo menos fica o registro para que aberrações do tipo não se repitam no futuro da democracia brasileira.

domingo, 3 de abril de 2016

Vida Súbita (2) - Kris

Kris Carr é uma atriz e escritora americana. Tem 44 anos, é bonita, inteligente, sexy. Faz documentários interessantes, é uma ativista engajada, incentiva e divulga hábitos saudáveis de vida. Casou-se com seu grande amor, vive feliz, pratica yoga e é vegetariana.

Kris Carr é conhecida em boa parte do mundo, possui um famoso site e já lançou 2 livros que atingiram o primeiro lugar na lista do The New York Times. Tem um programa na TV americana, é assediada pelo público, vive com sua agenda sempre lotada. Ah... já ia me esquecendo de dizer ... Kris luta contra um câncer grave e incurável.

Eu sei... senti o mesmo... o perfil inicial de Kris não combina com essa situação inesperada que surge ao final. A sensação é de que há algo errado nessa história. Parece que seu sucesso, sua beleza e sua inteligência deveriam trazer algo melhor ainda... não um drama de vida.

Há um fenômeno interessante ocorrendo neste século 21. Pessoas anônimas e famosas, bem como seus familiares e amigos, passaram a lidar com doenças e deficiências de uma forma mais positiva. Situações que antes faziam doentes e familiares guardar silêncio, atualmente são divulgadas e mostradas à sociedade sem cortes. O estigma negativo do passado vem dando lugar à exposição de dificuldades e dramas pessoais que podem ajudar a conscientizar sociedades.

Foi no Dia dos Namorados, no ano de 2003, que Kris Carr recebeu o diagnóstico de que possuía um câncer raro e incurável. Com apenas 31 anos e uma carreira artística promissora pela frente, foi obrigada a refazer planos e a repensar os rumos de sua vida.

A atriz, então, saiu em peregrinação pelos Estados Unidos, buscando métodos tradicionais e alternativos de cura. Achou conforto tanto na medicina e em hospitais quanto em práticas espirituais e corporais. Mudou sua dieta, passou a ser vegana, começou a praticar yoga. Decidiu, por fim, transformar sua luta num documentário chamado "Crazy Sexy Cancer", algo próximo a "Esse Câncer Sexy e Louco". No Brasil, seu livro saiu com o título "Câncer - e agora?" (Editora Globo).

Kris Carr tornou-se fonte de inspiração para milhões de pessoas que enfrentam o câncer. Além de mostrar, publicamente, como sua vida foi afetada pela doença, seu caso virou referência mundial de coragem... justamente por ser uma paciente que consegue sobreviver com a doença e, ainda assim, fazer de sua vida algo melhor.

Se não tivesse divulgado seu drama pessoal e não tivesse feito disso um meio para ajudar outras pessoas, Kris teria contribuído para manter o câncer cercado por tabus. Como decidiu o contrário, motiva pessoas a seguirem seus passos e ajuda a ciência a compreender melhor as características de seu caso. Aliás, motiva pessoas em geral, não só aquelas que enfrentam o câncer.

Bem... este post é para justificar porque estou escrevendo o "Vida Súbita". Fui diagnosticado com uma doença cardíaca, como já escrevi na postagem anterior. Sou um anônimo, não tenho fama. Mesmo assim, acredito no potencial da internet para registrar e compartilhar experiências e, quem sabe, ajudar outras pessoas a enfrentar algo que enfrento atualmente.

A propósito, Kris está viva após 13 anos convivendo com o câncer que ela chama de sexy e louco. Pensando bem, acho que toda doença é sexy e louca... todas destróem e reconstróem nossas vidas. Sexy e louco... Kris Carr escolheu bem as palavras.
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Texto criado a partir da postagem "Resiliência", publicada neste blog em 09/11/2008:
http://www.outravia.blogspot.com/2008/11/resiliencia.html

terça-feira, 29 de março de 2016

Vida Súbita (1) - Ontem

Ontem eu criei este blog. Isso foi em 2005. Foi ontem.
Ontem publiquei o último texto por aqui. Blog parado desde 2012. Parado desde ontem.
Ontem fui nadador. Treinei quase todos os dias da década de 80. Treinei ontem.
Ontem continuei treinando. Também treinei toda a década de 90. Década de ontem.
Ontem treinei mais ainda. Nadei de 2000 até 2006. Nadei um pouco mais ontem.

Ontem minha irmã, eu e meus irmãos nascemos. 1968 a 1973. Nascemos ontem.
Ontem foi meu primeiro dia na escola. 1975. Foi ontem.
Ontem integrei uma fantástica equipe de natação. De novo os anos 80.
Ontem eu me apaixonei, beijei, namorei. Ontem foi muito bom.
Ontem me apaixonei de novo, beijei de novo, namorei de novo. Ontem foi bom novamente.

Ontem ingressei na universidade, me formei, me pós-graduei. Ontem estudei muito.
Ontem fui trabalhar, pedi demissão, fui demitido, conheci chefes babacas. Tudo Ontem.
Ontem mudei de país, fui aprender coisas novas. Inglaterra, 2012. Ontem.
Ontem mudei-me para Espanha, vivi 1 ano em Barcelona. 2015. Ontem.
Ontem errei, acertei, me frustrei, fui medroso, corajoso, tive fé, fui ateu.
Ontem passou rápido.

Hoje é 29 de março de 2015. Domingo. Pouco após as 23 horas.
Hoje meu coração bate de forma estranha. Há algo bem errado comigo.
Hoje estou num pronto-socorro. Hospital Dante Pazzanese, São Paulo.
Hoje estou preocupado, tenso, não sei o que está acontecendo.
Hoje fui internado às pressas, minha vida está por um fio.

Hoje os médicos me monitoram a cada segundo. Dizem que tenho uma arritmia incomum.
Hoje meu coração bate errado demais. Taquicardia ventricular. Risco de vida.
Hoje me injetam um forte medicamento. Adenosina. É o choque químico.
Hoje o choque químico não reverte a arritmia. A sensação é de quase morte.
Hoje a tensão aumentou na emergência. Entendo que tudo pode acabar aqui.

Hoje começo a perder a consciência. Fibrilação cardíaca. Minhas mãos esfriam.
Hoje trazem a máquina de choque para meu lado. Minha visão escurece.
Hoje médicos e enfermeiras aproximam-se de mim. "Prepara o choque!", diz o chefe.
Hoje tenho receio de que não haja amanhã.

Agora meu coração quase parou. Senti meu último "agora" na vida.
Agora meu coração respondeu sozinho. Voltou a bater.
Agora estou recobrando a consciência, vejo-me ligado a vários aparelhos.
Agora os médicos me dizem que meu quadro é grave.
No jargão médico, acabo de ter uma morte súbita abortada.

Morte. Súbita. Abortada.

É por causa dessas 3 palavras que estou escrevendo.
Estranho saber que evitaram minha morte.
Isso certamente muda o conceito de vida dentro de alguém.
Meu conceito também mudou. E continua mudando.
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Acredite: não é a morte que é súbita. É a vida. Nota-se isso no momento em que a morte deixa de ser teoria e quase vira prática. Hoje eu vivi isso. Hoje não, isso tudo ocorreu em março de 2015. Foi ontem.

Descobri que a possibilidade de morrer resume o tempo a 3 dimensões: ontem, hoje e agora. Não há o daqui a pouco, nem o segundo seguinte, muito menos o amanhã. Vem daí aquela crença de que vemos um filme na hora da morte. Não é um filme. É apenas a forma como o cérebro organiza nossas informações: tudo que já vivemos condensa-se no 'ontem', um pequeno ponto na memória. O 'hoje' é um ponto menor ainda. O 'agora' é o menor de todos. A vida, portanto, é uma reticências: 3 pontos seguidos. Só. Por isso é tão fácil visualizá-la num último relance.

Dentro de minha reticências já fui atleta e já pratiquei todo tipo de atividade física. Natação foi quase uma profissão para mim. Treinei tudo que me foi permitido na infância, na adolescência e quando adulto. Cheguei a me viciar em prática esportiva. Deixava compromissos sociais e familiares para treinar. Fui um nadador mediano, disputava campeonatos brasileiros, mas nunca cheguei ao alto nível. Não é preciso, porém, chegar à elite para saber que a vida de atleta exige extrema dedicação física, emocional, intelectual e de tudo e todos que nos cercam.

Minha vida de nadador acaba de entrar na categoria 'ontem'. Hoje estou hospitalizado. Acabam de descobrir que tenho uma doença cardíaca rara, incurável e progressiva.

Rara. Incurável. Progressiva.

Ok... tudo isso parece bem ruim, eu sei. Deveria ser proibido juntar essas 3 palavras numa doença só. Mal terminei a primeira página e já há meia dúzia de palavras que me assustam. Contudo, há aspectos positivos no universo das doenças, algo difícil de aceitar num primeiro momento.

Em primeiro lugar, é preciso entender que o diagnóstico de uma doença não é algo necessariamente negativo. Tá... não é legal... eu sei... mas sem um diagnóstico, por melhor ou pior que seja, as chances de combater uma enfermidade seriam bastante reduzidas. Aceitar uma enfermidade não é fácil, mas desconhecê-la é muito pior e muito mais arriscado.

Em segundo lugar, a ideia de morte nos coloca em contato com aquilo que é prioridade em nossas vidas. Obviamente, todos nós conhecemos nossas prioridades e planos, mas vivemos como se houvesse um longo futuro para realizá-los. Se temos algo como prioridade e adiamos sua realização, então pressupomos que o futuro está garantido. Pode ser que não esteja.

"Vida Súbita" pretende ser uma série de textos sobre nossa condição de seres do "ontem, hoje e agora". Isso não significa negar a esperança que cada um tem de futuro, mas estimular pessoas a trazerem suas prioridades para o momento presente.

Não tenho o objetivo de escrever sobre auto-ajuda, sobre como realizar hoje tudo aquilo que alguém sonha em vida. Não sou candidato a guru. A ideia principal é usar minha atual condição de vida para refletir sobre tensões e superações comuns a todos nós.

Aqui também serão registradas histórias de pessoas que enfrentam ou enfrentaram seus próprios desafios de vida. A ideia é criar um espaço para compartilhar histórias de superação ou mesmo de não-superação. Será um registro sobre a forma como lidamos com algo que, um dia, a ciência promete vencer: o drama da doença e de nossa própria morte.